Cristã vegana - parte I


Crista vegana? Isso é possível? Isso é pecado? Deus condena? Desde que me tornei vegana, alguns cristãos me criticaram e julgaram por falarem que eu estava entrando em uma ideologia mundana, porque, afinal, Deus deu os animais para que o homem dominasse e eles também interpretam esse domínio como "matar para comer", e que isso está na bíblia e como a bíblia é a verdade eu não posso ir contra ela porque estaria pecando. Pensando em tudo isso e com o tanto que eu sofri com esses julgamentos, decidi escrever esse texto baseando meus pensamentos também na bíblia. Que fique claro que não estou tentando convencer ninguém aqui a se "converter" ao veganismo, muito menos julgar os que comem animais, quero apenas mostrar que a bíblia não pode ser usada para obrigar nem eu, nem você a comer animais. Dividirei esse texto em algumas partes porque é um assunto que exige um pouco mais de reflexão e cuidado, portanto pretendo ser minuciosa e tentar responder todas as perguntas e acusas feitas a mim desde que me tornei vegana (posso fazer um texto de como isso aconteceu depois de tudo isso).

Primeiramente eu não acredito que comer ou não animal seja um ponto de salvação, estou do lado de Paulo quando fala que é irrelevante para a salvação (Assim, seja qual for o seu modo de crer a respeito destas coisas (alimentação), que isso permaneça entre você e Deus. Feliz é o homem que não se condena naquilo que aprova. – Romanos 14:22), eu não me acho mais nem menos cristã por não comer animais e também não acho que os carnistas são mais nem menos cristãos por comê-los (1Co 8:8: Ora, não são os alimentos que nos fazem aceitáveis diante de Deus; não nos tornaremos piores se não comermos, nem melhores se comermos). Em segundo lugar, eu espero que respeitemos as opiniões um do outro, portanto fiquem à vontade para discordar, porém peço que entendam que nem todos compartilham da mesma opinião e tudo bem, só não podemos julgar uns aos outros. E último ponto antes de começar meus argumentos é que não acho justo defender o consumo ou não consumo de animais pela bíblia, porque a alimentação de mais de 2000 anos atrás é bem diferente da que temos hoje, muitas instruções foram dadas por conta do momento em que eles viviam, caso discorde, novamente lembro das palavras de Paulo, mas como os cristãos que foram contra mim argumentaram por ela, também vou usá-la aqui. 

Vou começar pela parte bíblica. Em Gênesis podemos ver qual foi o plano inicial de Deus para a humanidade e como o pecado corrompeu tudo isso. O éden era o paraíso e como nele não havia pecado, creio que também não havia mortes, dor, nem sofrimento. Antes da queda não há relatos de morte de animais. Quando Deus instruiu o homem a dominar sobre os animais (Gn. 1:26), Ele não estava dando ordem de matança, até porque nós somos dominantes dos nossos pets por exemplo, e não os matamos quando fazem algo que não queremos (pelo menos não se deveria porque não é moral ou ético, mas vou chegar lá). E lembrando que é o paraíso, portanto não haveria a corrupção da natureza, sendo a morte uma delas. Creio que Deus colocou o homem na posição de dominante (ou rei em algumas versões, assim todo rei tem a opção de ser benevolente com seu reino) dos animais porque de todos eles somos os únicos que conseguimos racionalizar nossas ações, ou seja, o homem foi instruído a ser responsável pelo cuidado da criação de Deus. E também penso que se fosse para os animais serem mortos seja para servir de alimento, vestimenta, ou qualquer outra coisa no éden, Deus não os criaria capazes de sentir dor, tristeza, angústia, solidão ou desespero, já que essas coisas nunca entrariam no paraíso. 

Explanando um pouco melhor a diferença entre sujeitar, dominar para matar e torturar: Coloco aqui os versículos citados como referência e um pequeno estudo sobre eles. Gn 1:26-30: “Então Deus determinou: ‘Façamos o ser humano à nossa imagem, de acordo com a nossa semelhança. Dominem eles sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os grandes animais e todas as feras da terra, e sobre todos os pequenos seres viventes que se movem rente ao chão!’ Deus, portanto, criou os seres humanos à sua imagem, à imagem de Deus os criou: macho e fêmea os criou. Deus os abençoou e lhes ordenou: ‘Sede férteis e multiplicai-vos! Povoai e sujeitai toda a terra; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todo animal que rasteja sobre a terra!’ E acrescentou Deus: ‘Eis que vos dou todas as plantas que nascem por toda a terra e produzem sementes, e todas as árvores que dão frutos com sementes: esse será o vosso alimento! Também dou a todos os animais da terra, a todas as aves dos céus, a todos os répteis da terra, e a todas as criaturas em que há fôlego de vida, todos os vegetais existentes, como mantimento e sustento!’”. 

Estudo por Fabio Chaves: "O que tem sido traduzido como “ter domínio” é a palavra “yirdu”. “Yirdu” poderia ser melhor traduzido como “descerão”. Fosse a intenção do autor do original hebraico de fato transmitir a ideia de domínio na criação, a palavra que deveria ser empregada seria “shalthanhon”. Nem mesmo a ideia de governo benévolo do homem sobre as demais criaturas é passada neste versículo, visto que a palavra que a Bíblia usa quando se refere ao domínio pacífico é “mashel”. Porém, foi empregada a palavra ”yirdu”, que permite outra tradução do versículo: “Disse Deus: façamos o homem à nossa imagem e semelhança; e descerão para os peixes do mar, e para as aves dos céus, para os rebanhos e para toda a terra e para todo réptil que rasteja sobre a terra”. Se seguirmos essa tradução, que é mais fiel ao original, podemos interpretar que a intenção da Bíblia pode ter sido mostrar que Deus criou o homem de uma maneira especial, mas que o homem desceria aos animais. Gênesis 1:28 “E Deus os abençoou e lhes disse: sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra.”. Novamente, a palavra “desça” aparece traduzida como “domine”. O que aparece nesse versículo como “sujeitai-a” é a palavra “kibshah”, que significa preservar. Fosse de fato a intenção do autor transmitir a ideia de “sujeitar” ele teria empregado a palavra “hichriach”". 

Quando instruindo o homem na alimentação, Deus cita explicitamente plantas (Gn. 1:29). Ou seja, o homem não necessitava de animais para se alimentar, assim como hoje. E tanto não existia morte, que Deus também nos diz que todos os animais também se alimentariam de plantas (Gn. 1:30). E tudo isso, viu Deus que era bom. Portanto, interpreto que não fomos criados para consumir carne, a própria maneira que o nosso corpo é estruturado nos mostra isso (coloco aqui algumas referências: Roberts, William C "Twenty questions on artherosclerosis". Proceedings (Baylor University. Medical Center). 2000 Apr; 13(2): 139-143; Roberts, MD, William C "We think we are one, we act as if we are one, but we are not one". The American Journal of Cardiology. October 1, 1990. Volume 66, Issue 10, Page 896; Teaford, Mark F and Ungar, Peter S. "Diet and the evolution of the earliest human ancestors". Proceedings of the National Academy of Sciences. Vol. 97. No. 25. October 5, 2000. Também pode-se ver sobre isso no documentário "What the health"). Depois da queda do homem acontece a primeira morte no éden, Deus sacrifica animais para fazer túnicas aos humanos. Entendo aqui que Deus estava cumprindo com sua palavra. Já que o salário do pecado é a morte, para que Adão e Eva não morressem, Deus sacrifica esses animais, com luto, porque era Sua criação e não era sua vontade que o Homem pecasse, mas todo pecado traz consequências. 

A bíblia só cita alimentação carnívora pós-queda. No episódio de Caim e Abel, Abel faz um sacrifício e não há relatos de que se alimenta dele, e sim o oferece ao Senhor. Já no episódio de Noé vê-se Deus abrindo uma exceção para nos alimentarmos dos animais e pessoalmente dando direções sobre como os humanos poderiam fazer isso, já que estavam em situação de escassez alimentar por conta do dilúvio que devastou a terra, de modo que as plantações também foram devastadas. Novamente para Noé, Deus entrega em suas mãos os animais e não está se falando apenas de morte, mas principalmente de responsabilidade quando Ele diz que requererá o sangue de vida dos homens e todos os animais (Gn. 9:5). E ainda demonstrando a importância dos animais, Deus estabelece seu pacto não somente com a família de Noé, mas com todo ser vivente que com ele estava (Gn. 9:9-11). Quando Deus permite alimentação carnívora foi somente quando ela se tornou necessária – lembrando que hoje ela não é necessária – para a nutrição humana e com muitas ressalvas, e precauções por conta dos altos riscos de contaminação e inflamação que esta traria ao corpo, porque o mesmo não tinha sido criado para isso. Foi uma concessão, não uma vontade, e já tinham se passado 10 gerações desde a primeira, não estou dizendo que nenhum humano comeu animal antes disso, de fato se mataram animais para fazerem roupas e pode ser que comeram a carne desses animais, porém a Bíblia não relata e a instrução sobre alimentação carnívora só vem no contexto já explicado. Em uma situação desértica onde o ser humano não encontraria alimento, Deus permitiu.

Depois da queda há necessidade de sangue sacrificial gerada pela quebra da relação humanidade-Deus durante a Era da Lei. Esta necessidade deixou de existir com o derramamento do Sangue de Cristo. Por isso, a lei designada aos judeus, que incluiu vários tipos de derramamento de sangue, não é mais necessária (até porque sacrifício animal não é nada ético na sociedade em que vivemos e é crime). Deve-se entender também que os animais significavam as riquezas materiais dos servos de Deus. Jesus não havia derrubado o véu que nos impede de olhar para Deus face a face naquela época. Jesus ao derrubar o véu também derrubou a religiosidade minuciosa judaica e nos desobriga a sacrificar os animais. A graça nos convida a entregar nossas riquezas, que não necessariamente são apenas moedas e cédulas, mas colocar Deus em primeiro lugar e submeter-nos por inteiro a Ele. A Lei nos obrigava sob pena de morte, mas a Graça nos convida num ato de Amor a Deus. 

Penso no maná também, ele não tinha não tinha carne e o povo conseguia todos os seus nutrientes com ele. No episódio de números 11, por exemplo, Deus só mandou carne para eles, pois estavam murmurando nos ouvidos de Moisés, que se enfadou e relatou a Deus que pediu para que o povo se santificasse (comer carne era complicado ao ponto do povo precisar se santificar antes), porque no dia seguinte eles comeriam carne e por um mês inteiro ainda “até sair pelas narinas” porque eles rejeitaram o cuidado do Senhor. Deus sabia o que era melhor para o seu povo, Ele não deu carne antes, mas por causa da murmuração do povo, Ele enviou codornizes que foram “colhidas” (aqui não há sinal de que elas precisaram ser mortas pelo povo, Deus poderia ter as sacrificado sem dor). Quando a carne estava entre os dentes do povo, Deus se irou e enviou uma praga contra ele. Aqui entendo que Deus se ira, pois esse não era o plano dele. Ele não queria que as codornizes fossem sacrificadas, Ele não queria que o povo O rejeitasse pela carne. Em deuteronômio 12:15, mais uma vez, Deus permite o consumo da carne e abençoa, mas reforça que é conforme o desejo “da tua alma”, ou seja, não era o desejo dele.

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