Gramaticalmente incorreto

     Cresci cercada por nordestinos muito humildes, que sobreviviam do que plantavam. Minha mãe é pernambucana, assim como toda sua família. Ela nunca teve acesso a uma educação de qualidade, porém sempre foi dedicada e se esforçou para terminar o colegial em São Paulo, quando decidiu se mudar e começar uma nova vida. Em São Paulo, conheceu meu pai, um menino que desistiu da escola quando estava na 5ª série (equivalente ao 6º ano) para ajudar sua mãe e sua avó nas despesas de casa e nunca mais voltou a estudar.
     Minha mãe, sempre dedicada ao “falar corretamente”, costumava corrigir meu pai sempre que ele cometia algum erro gramatical. Eu e meu irmão ríamos da situação, meu pai entrava na brincadeira e ria junto. Até que um dia, um pouco mais velha, percebi que não deveria rir do meu pai por não saber desenvolver uma frase gramaticalmente correta, pois, além de preconceito linguístico (na época não conhecia o termo), era falta de respeito. Não poderia exigir dele algo que não teve a oportunidade de receber.
     O tempo passou, e decidi que deveria cursar Letras. Quando entrei na universidade, a primeira matéria que tive foi justamente sobre Preconceito Linguístico. Encantei-me pelo assunto e pelo livro de Marcos Bagno, até porque conhecia muitos dos relatos ali, pois eram semelhantes aos dos meus parentes e aos da minha casa.
     Nesse mesmo período, estava começando a explodir um novo movimento na internet no qual páginas humorísticas estavam postando diálogos com sentenças gramaticalmente incorretas e, por esse motivo, causavam o humor. O movimento tomou ainda mais força e invadiu as páginas das redes sociais de todos os meus amigos. Não posso negar que entrei na onda, mas nunca tinha parado para pensar nesse movimento, até que, depois de rir muito de um dos memes, decidi mostrar para meu pai e ele não achou graça. Fiquei inconformada! Como ele não achou engraçado, sendo que eu e meus amigos rimos tanto ao ler? Então me dei conta de que, para ele, aquilo não era engraçado porque ele não sabia a graça, literalmente. O humor, o riso é causado através da quebra de expectativa de algo. Por exemplo, quando vemos alguém tropeçar, a tendência é rirmos, pois não esperávamos tal reação. No caso do meme, eu e a sociedade em que estou incluída estávamos cientes de como aquela frase deviria ser escrita, portanto, quando ela não foi escrita daquela maneira, a expectativa foi quebrada. Para meu pai foi diferente, pois ele não sabia a maneira correta. Então me dei conta de que aquele humor que na minha cabeça parecia ser universal, só fazia sentido para o grupo de pessoas que “manuseavam bem” a Língua.
     Comecei a pensar “por que o número de piadas, propositalmente causadas pelo “erro” da norma culta, aumentou nos últimos anos, dominando o humor na internet?”. A resposta está diretamente ligada ao público que domina a internet, a geração da informação, da rapidez. Para um movimento crescer, são necessárias pessoas que o aceitem. Como a maioria do público internauta domina bem o uso da língua, pois é de jovens de classe média, com acesso à escolaridade e à informação, preocupados com um mercado de trabalho exigente, não é difícil para eles perceberem que a frase “seje menas”, por exemplo, está errada do ponto de vista da Gramática Normativa. Por haver a compreensão e o humor, compartilhar esse tipo de frase se torna natural. Obviamente existem exceções, mas estamos pensando aqui na maioria dos internautas.
     Como um dia me tornarei professora, tentei pensar nessa discussão dentro da sala de aula. Será que esse tipo de movimento humorístico é produtivo para o professor de Língua Brasileira? Meus alunos provavelmente estarão inseridos no meio desses internautas e também compartilharão memes desse tipo. Esse pode ser um bom gancho para começar uma aula de gramática, por exemplo, pois se eles acham engraçado, significa que eles entendem que pela linguística formal, não deveria estar escrito daquela maneira, portanto estão cientes da forma padrão. Isso também ajudaria na interação, pois a gramática normativa, por si só, para um aluno não é tão interessante. Porém podemos pensar “será que fazer uso desses memes em sala de aula, seria contribuir para o preconceito linguístico?”. Será que isso não é o mesmo que rir do meu pai quando ele fala algo errado? Ao mesmo tempo em que estamos lidando com uma geração mais informada, também estamos lidando com uma geração mais consciente. Sabemos separar melhor as coisas entre internet e sociedade, embora, às vezes, juntar as duas seja inevitável. Rir de algo sem contexto na internet, criado com a finalidade de divertir e não ofender, é diferente de rir de alguém que não sabe falar de acordo com a norma padrão no mundo real, ou humilhá-la por variantes linguísticas que usam. Portanto se nós, professores, tivermos cautela na hora de usar tais memes, não estaremos criando preconceituosos, pelo contrário, podemos usá-los para explicar o preconceito linguístico e conscientizar nossos alunos.
     O movimento humorístico do “gramaticalmente incorreto” é tão forte hoje em dia no Brasil, que foi até capaz de criar novas palavras, gírias e bordões que permeiam o dia-a-dia dos internautas. Escrever as palavras como as falamos e “brincar” com a língua para criar novas palavras pode prejudicar o aprendizado do Português Brasileiro? Esse uso da linguagem “afeta” o processo de aprendizagem da Língua Materna e interfere no ensino da gramática normativa e práticas de leitura e escrita? Já pincelei um pouco dessas questões nos parágrafos anteriores, mas são tantas teorias para se analisar que precisamos de métodos de pesquisa, dados autênticos, precisamos ir mais afundo e não somente no nível das especulações. Por esses motivos escolhi “humor provocado através da transgressão da norma culta” como assunto do meu primeiro projeto de pesquisa.
     No projeto, analisaremos o aumento de frases e expressões humorísticas causadas propositalmente pela transgressão da norma culta brasileira, e como isso pode ocasionar novas gírias e palavras. Direcionada ao professor do Português Brasileiro, nossa discussão aborda como, ou se, isso pode afetar na sala de aula, aprendizagem do aluno e na prática da Língua.
     Tais questionamentos e reflexões são de muita importância para professores e outras profissões interessadas na área, pois o devemos entender como usar o discurso humorístico com a Língua à nosso favor (usando como exemplo, conscientizando sobre preconceito, levantando temas de pesquisa) em sala de aula, já que, de qualquer forma, ele já está inserido nela através do repertório de cada indivíduo. O mundo está mudando e precisamos acompanhá-lo, pois com ele, mudam as pessoas. Pensar fora da caixa é um grande passo para começar a envolver os alunos. Precisamos pensar na formação de cada uma deles como indivíduo e como isso afeta em suas vidas escolares. Para isso, por que não começar através do discurso humorístico? Já que é um dos discursos que tem mais força e que mais moldam opiniões hoje em dia. “Né nom”? 



*Ensaio realizado para fins acadêmicos para um projeto científico. 

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